domingo, 3 de junho de 2018

Um dia triste.




O dia mais triste do início da carreira do jornalista Aureliano Biancarelli foi uma sexta-feira, dia 1º de fevereiro de 1974. “Lembro que, apesar do estarmos no verão, a manhã estava encoberta, meio chuvosa, cinzenta e triste. E ficaria muito mais triste nas horas que se seguiriam”, começa a contar.
“Me recordo que estava saindo do banho, depois do café da manhã, quando o barulho das sirenes me chamou a atenção. Eu morava com colegas no sétimo andar de um prédio da Rua Dona Antônia de Queiroz, bem perto da Consolação. Sirene ali era um ruído cotidiano, mas naquele dia o barulho era tanto que alguma coisa muito grave deveria estar acontecendo.”
Já passava das 9 hs, e a Consolação começava a parar, tomada por carros da polícia, bombeiros e ambulâncias. Ele desceu a rua a pé, seguindo os helicópteros. Pelo caminho, as pessoas falavam de um grande incêndio no Joelma, um edifício até então desconhecido.
Conseguiu se aproximar descendo a escadaria que liga a Avenida Xavier de Toledo ao Vale do Anhangabaú, onde hoje fica a entrada do metrô. Passou pelos cordões de policiais, que impediam a aproximação das pessoas, até ter a primeira visão do prédio: “Mesmo ainda da escadaria, foi aterradora. O fogo já consumia a maior parte dos 25 andares, e dezenas de pessoas se amontoavam no telhado. Foi então que vi a primeira pessoa se jogar, cena que se repetiria seguidamente, a cada vez que o vento deslocava as grandes labaredas de um lado para o outro do prédio”, afirma.
A contagem feita dias depois vaticinou: dos 188 mortos, 18 tinham se jogado do edifício.
“Eu tinha acompanhado o incêndio do Andraus, dois anos antes. As pessoas correram para o teto, que permitia o pouso de helicóptero, e foram salvas. Dessa vez, as pessoas se lembraram daquelas notícias, mas lá em cima encontraram uma armadilha. O telhado era de madeira e as telhas de amianto. Para respirar, retiravam as telhas e ficavam sobre o madeiramento, arrancando as roupas e cobrindo os rostos para evitar a fumaça.”
E continua: “Em torno do prédio que queimava, milhares de pessoas se apertavam na passarela da Praça das Bandeiras e no Viaduto do Chá, chorando e esticando faixas, pedindo calma. Por volta do meio-dia, subi no teto de um prédio onde havia uma dessas lunetas usadas por turistas para observar a cidade. Foi a cena mais chocante: as pessoas estavam ali, ao alcance da minha mão, se contorcendo, se abraçando, morrendo, algumas já caídas, sem roupa. Um helicóptero tentava se aproximar, mas eram tantas as mãos tentando agarrá-lo que ele era obrigado a se afastar. Apenas jogava toalhas molhadas”.
Biancarelli conta que depois um sargento conseguiu se jogar de uma altura de quatro metros, de um helicóptero sobre o telhado, quebrando as telhas de amianto e o tornozelo. Augusto Carlos Cassaniga era o nome desse sargento, que fixou uma corda no telhado e lançou-a até o prédio vizinho, por onde atravessaria o capitão Hélio Caldas, que já tinha sido herói no Andraus.
“O capitão Caldas contou 64 corpos no telhado. Foi a último a sair. Ele diz que, ao tirar o uniforme em casa, encontrou vários bilhetes enfiados em seus bolsos. Eram rabiscos de pessoas se despedindo das famílias. Ele disse que não teve coragem de ler o que estava escrito.”
 “Foi certamente a edição mais sofrida e conturbada que já vivi. Eu tinha 23 anos na época e estava havia um ano na redação de ‘Veja’. Como era sexta-feira, tínhamos que fechar a edição naquela mesma noite. As mesas da redação foram cobertas por centenas de fotos. Mino Carta comandava o trabalho. A cada retranca que íamos escrever, faltavam detalhes. Os repórteres estavam esgotados. A edição foi fechada ao longo do sábado, e o número exato de mortos só foi definido na semana seguinte”, completa.
Foi um dia triste. Muito triste. Foi uma tragédia. Que poderia ter sido evitada. (15/06/2002)

Fonte: bardobulga.blogspot.
Fotos: pilotopolicial. Wikipédia


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